Cannabidiol na epilepsia de difícil controle

Cannabidiol na epilepsia de difícil controle

Por Dra Eliana Garzon

Relatos recentes de “cura milagrosa” de crianças, com encefalopatia epiléptica, tratadas com cannabidiol, provocou um grande interesse de médicos, químicos e farmacêuticos em estudar a molécula quanto aos seus mecanismos de ação e metabolização, além de desenhar estudos apropriados para definir eficácia e segurança da droga.

Epilepsia é uma doença neurológica crônica, relativamente comum, principalmente na infância. Em geral, 70% dos pacientes ficarão livres de crises com os medicamentos apropriados.

Entretanto, nos 30% restantes, haverá dificuldade para o controle completo das crises epilépticas. Para este grupo de pacientes com epilepsia refratária, há outras modalidades de tratamento, incluindo novas drogas, tratamento com dieta, tratamento cirúrgico e implantação de marca passo para epilepsia (estimulador do nervo vago). Em quase todos os pacientes com epilepsia refratária, a qualidade de vida está prejudicada pela própria doença e pelo excesso de medicações usadas para o controle das crises. Qualquer tipo de epilepsia pode ser refratária ao tratamento clínico, porém as encefalopatias epilépticas são as de maior desafio ao tratamento. Neste grupo, se destacam a Síndrome de Dravet e a Síndrome de Lennox-Gastaut. Apesar da existência de várias drogas antiepilépticas, ainda é necessário o desenvolvimento de novas terapêuticas.

Canabinóides no Tratamento das Epilepsias

A história do uso da planta Cannabis pelos seres humanos data de mais de 5.000 anos. Esta planta é originária da Ásia Central e inicialmente era cultivada na China para a produção de fibras e de sementes e, na Índia, para produção de resina. Os primeiros estudos do uso de Cannabis medicinal datam de 2.700 A.C., na China. Relatos escritos para tratamento de convulsões noturnas datam de 1.800 A.C.

As primeiras descrições detalhadas e modernas da utilização de Cannabis como medicação para controle de crises epilépticas são de 1.843, porém no século XX o uso declinou, principalmente, pelo cultivo da planta ser ilegal em muitos países.

Os avanços científicos na compreensão das propriedades da planta continuaram sendo realizados por químicos e farmacologistas. A planta contém mais de 100 componentes químicos ativos e são chamados de cannabinóides. Dentre todos os cannabinóides, dois são mais abundantes e melhor caracterizados, o THC e o CBD. Os pesquisadores observaram que a aplicabilidade clínica da Cannabis seria limitada pela presença do THC, em função das suas propriedades psicoafetivas. Desta forma, a atenção voltou-se para o CBD, outro componente da Cannabis, porém sem as propriedades psicoafetivas do THC.

Como o CBD atua para o controle das crises?

Em nosso corpo, existem receptores cannabinóides, particularmente nos neurônios. Existem componentes químicos em nosso cérebro que atuam nestes receptores e é provável que a função destes receptores, em nosso cérebro, esteja relacionada a um controle na transmissão de informações entre os neurônios (transmissão sináptica). Vários estudos sugerem que o sistema cannabinóide, presente em nosso cérebro, esteja envolvido na epilepsia. Os cannabinóides possuem inúmeras e complexas propriedades, quando estudados em laboratório. Por exemplo, o THC tem propriedades psicoafetivas, efeito anticonvulsivante, analgésico, cognitivo, relaxante muscular, anti-inflamatório, estimulante do apetite e propriedades para controlar o vômito (propriedades anti-eméticas).

O CBD possui propriedades anticonvulsivante, ansiolítica, analgésica, anti-inflamatória, anti-emética e pode atuar como neuroprotetor, além de modular o sistema imunológico. O interessante é que o CBD interage muito fracamente com os receptores cannabinóides presentes em nosso cérebro e é provável que sua ação anticonvulsivante seja mediada por outros mecanismos, possivelmente envolvendo outros receptores, canais iônicos e moléculas transportadoras de neurotransmissores. O mecanismo de ação preciso não é conhecido.

O CBD penetra facilmente no sistema nervoso central porém, após a ingestão por via oral, aproximadamente 10% da dose ingerida chega até a corrente sanguínea e estará disponível para atingir o cérebro. Isto ocorre porque a absorção é irregular, parte da droga é metabolizada (destruída) pela parede intestinal e ainda há uma extensa metabolização pelo fígado (hepática). Sabe-se que as formulações hoje existentes de cápsulas e suspensão oleosa apresentam grande variabilidade quanto ao que realmente é absorvido.

Uso clínico do CBD na Epilepsia de Difícil Controle

Recentemente, “respostas milagrosas” têm sido relatadas em crianças com encefalopatia epiléptica utilizando Cannabidiol. É compreensível que os pais de crianças com epilepsia refratária e mesmo pessoas adultas com epilepsia refratária estejam dispostos a tentar qualquer opção disponível; entretanto, os profissionais de saúde, antes da prescrição de qualquer novo medicamento, precisam estar atentos às questões de segurança e eficácia do medicamento. As evidências são demonstradas a partir de estudos comparativos entre o medicamento a ser testado, neste caso CBD, e placebo, ou seja, substâncias que não possuem propriedades terapêuticas.

Os estudos que possuem um peso científico devem ser cegos, ou seja, nem o paciente e nem o médico sabem o que está usando, se CBD ou se placebo. Somente ao final do período de análise é que se tem os resultados sobre o que cada paciente estava usando. Os resultados são comparados para determinar a eficácia do medicamento. Só serão consideradas eficazes as moléculas com ação superior ao placebo.

É importante saber que, nos estudos e na prática clínica, o CBD nunca substitui os outros medicamentos anticonvulsivantes em uso. A molécula a ser estudada é sempre adicionada aos medicamentos do paciente, uma vez que não se conhece dados específicos sobre a segurança e eficácia do CBD.

O primeiro destes estudos randomizados e duplo cego terminou em 2017, conduzido pelo Dr. Orrin Devinsky, em Nova York, com pacientes provenientes de 12 centros dos Estados Unidos e do Reino Unido.

Pacientes com Síndrome de Dravet foram randomizados (sorteados) para receber CBD ou placebo na dose de 20 mg/kg durante 14 semanas. A porcentagem de pacientes que melhoraram mais de 50% das crises, considerando as crises generalizadas do tipo tônico-clônicas (crises com enrijecimento e abalos musculares no corpo todo) foi de 43% no grupo que usou CBD e 27% no grupo que usou placebo.

No grupo que usou CBD, 5% dos pacientes ficaram livres de crises, enquanto nenhum paciente do grupo placebo ficou livre de crises.

Para os outros tipos de crises (ausência, crise focal ou outras), não houve nenhuma diferença entre o grupo com CBD e o grupo com placebo.

Canabidiol-4

Os principais efeitos colaterais foram diarreia, vômitos, fadiga, aumento da temperatura, sonolência e alteração das enzimas hepáticas. Estas enzimas são dosadas através de exame de sangue e servem para avaliar a função do fígado e avaliar se o medicamento pode causar lesão ou comprometimento hepático. Todos os efeitos colaterais foram de leve a moderada intensidade. Dos 61 pacientes, recebendo CBD, 8 tiveram que parar o uso por efeitos colaterais.

Os outros medicamentos que os pacientes estavam em uso permaneceram na mesma dose, sem modificação. As principais interações medicamentosas ocorreram entre CBD e Ácido Valpróico e CBD e Clobazam.

Um outro estudo, com a mesma metodologia (duplo cego, randomizado), foi conduzido em pacientes com Síndrome de Lennox-Gastaut utilizando CBD na dose de 20 mg/Kg. Durante o estudo, houve em média redução de 44% das crises de queda, nos pacientes recebendo CBD e 22% de redução das crises de queda nos pacientes recebendo placebo; sendo que 3 pacientes do grupo CBD e 1 paciente do grupo placebo ficaram livres de crises. Os efeitos colaterais do CBD foram semelhantes aos efeitos relatados no grupo com Síndrome de Dravet e ocorreram em torno de 10% dos pacientes. Nos dois estudos, o CBD foi superior ao placebo no que se refere ao controle de crises.

O Cannabidiol está sendo testado para outras formas de epilepsia refratária como Síndrome de West e Síndrome de Sturge-Weber. Estes estudos ainda têm um pequeno número de casos e não há dados conclusivos.

Qual o consenso atual da literatura médica sobre o uso do Cannabidiol (CBD) para as epilepsias refratárias?

1- Sabe-se que o Cannabidiol tem propriedades anticonvulsivantes. O efeito do CBD foi superior ao uso de placebo na Síndrome de Dravet e na Síndrome de Lennox-Gastaut.
2- Sabe-se que o Cannabidiol tem propriedades complexas de metabolização e de distribuição pelo corpo. A absorção por via oral é irregular. Há extensa metabolização hepática. Estas propriedades não favorecem a utilização das apresentações (cápsulas e suspensão oleosa) que temos disponíveis até o momento.
3- Sabe-se que o CBD interage com várias outras drogas, incluindo as drogas antiepilépticas.
4- Sabe-se que CBD tem efeitos colaterais.

O que precisa ser compreendido:

1- Como o CBD atua para o controle das crises.
2- É necessário encontrar formulações que possam ser mais eficazes do que as atuais existentes.
3- Não se sabe, se o uso de CBD, a longo prazo provocará diferença significativa na vida das famílias e das pessoas com epilepsia.
4- É totalmente inexplicado e incompreendido porque alguns pacientes apresentam uma “resposta milagrosa” à molécula.

Os seguintes artigos foram consultados para este texto:

Brodie MJ, Bem-Menachem E. Cannabinoids for epilepsy: What do we know and where do we go? Epilepsia 2018;59:291-296.
Devinsky O, Cross JH, Laux L, et al. Cannabidiol in Dravet syndrome study group. Trial of cannabidiol for drug resistant seizures in the Dravet syndrome. N Engl J Med. 2017;376:2011-20.
Perucca E. Cannabinoids in the treatment of Epilepsy: Hard evidence at Last? J Epilepsy Res. 2017;7(2):61-76.
Thiele EA, Marsh ED, French JA, et al. Cannabidiol in patients with seizures associated with Lennox-Gastaut syndrome (GWPCARE4): a randomized, doubl-blind, placebo-controlled phase 3 trial. Lancet 2018;391:1085-96 .